Há poetas que elegeram quinquilharias para compor seu universo poético. Mario Quintana, Manuel Bandeira e Manoel de Barros – para ficar só na Literatura Brasileira – são alguns deles. Eu começo com os poetas, porque eles são seres que vêem muito mais do que os outros. Eles têm olhos transfigurados. Por isso, vivem de metáforas. Quando olham um objeto, enxergam os homens e sua vida. E fazem os objetos traduzir os dois.

            Ora, a ocasião pede que pensemos na panela. Há bilhões de panelas no mundo. Pelo menos uma para cada ser humano na face da Terra. A panela é uma milenar tecnologia. Uma das primeiras. Quem domesticou o fogo, provavelmente o fez sonhando com panelas. Mas ninguém elege sonhos como marcos revolucionários. Então quero defender aqui o lugar merecido da panela como uma das maiores conquistas da civilização. Revolucionária, sim senhor, porque, entre o cru e o cozido, o homem demarcou sua trajetória como civilizado. Mesmo que depois da panela, viesse o canhão… por causa da panela vazia… Defendo também que devemos a dedicação de um dia-calendário em honra à panela. Não tem dia do aviador? do médico? da criança? do pai? da mãe? do trabalho? do professor? do santo de cada dia? Então? Uma dia da panela seria muito justo. Mais justo ainda se, comovidos por conta de nossa dívida para com o anônimo inventor da panela ou pelas hostes de miseráveis de panelas vazias ao longo da história, decretássemos esse dia como feriado nacional.

            Cora Coralina inventou e instaurou, em sua Goiás Velha, o dia do vizinho. Inventemos, nós, de Gurupi, o dia da panela. Excelente ocasião para colocarmos o nome de nossa cidade na história. Gurupi, a cidade que criou o dia da panela! Os gaúchos, nas cidades que colonizam, colocam no portal da cidade uma cuia de chimarrão e uma chaleira gigantescas. Quem chega à cidade, fica logo sabendo que ali tem gaúcho e certamente uma boa churrascaria, uma boa cerveja. Então, se colocarmos uma panela gigante, uma em cada entrada ou saída (acho que são quatro), pode ser que os viajantes não esperem muita coisa. Mas, no mínimo, vão pensar que, por aqui, prezamos as panelas. E vão pensar nas suas que ficaram em casa e na esposa e nos filhos que disseram “vá com Deus e volte logo”. Vão pensar na comida que se divide e no trabalho que se justifica pelo que entra nestas mesmas panelas.

            Mas, voltando aos poetas, eu quis muito encontrar neles esse deslumbramento por uma panela qualquer. Transversaram eles. Não elegeram a panela como tema. Os que o fizeram, sinceramente não impactaram. Drummond falou de uma xícara. Quintana, do relógio, do catavento, da cadeira. Cora Coralina, do prato azul pombinho. Manuel de Barros, de avencas, sapos e bentevis. E da panela esqueceram? Não propriamente. Cora Coralina, por exemplo, escreveu: “Vive dentro de mim / a mulher cozinheira. / Pimenta e cebola. / Quitute bem feito. / Panela de barro. / Taipa de lenha. / Cozinha antiga / toda pretinha.” Como se vê, não esqueceu da panela. Em Antigüidades, escreveu ainda: “Quando eu era menina / bem pequena, / em nossa casa, / certos dias da semana / se fazia um bolo, /assado na panela / com um testo de borralho em cima.”         No poema Estas mãos, ela testemunha a si mesma com estes versos: “Olha para estas mãos / de mulher roceira, / esforçadas mãos cavouqueiras. / / Íntimas da economia, / do arroz e do feijão / da sua casa. / Do tacho de cobre. / Da panela de barro. / Da acha de lenha. / Da cinza da fornalha. / / Minhas mãos doceiras… / Jamais ociosas. / Fecundas. Imensas e ocupadas. / Mãos laboriosas. / Abertas sempre para dar, / ajudar, unir e abençoar.” Cora Coralina era doceira. E doce se faz num tacho. Sem dúvida, sabia-se em meio a panelas. Estive em sua casa em Janeiro. Entrei reverente naquele santuário. O tacho está lá entre as relíquias velhas. Mas Goiás Velha oferece as panelas de barro a visitantes. Comprei cinco, para ter em casa a matéria e o universo de Cora Coralina.

            Ferreira Gullar, em Poema sujo, registra a panela: “E era / naquele seu universo de almoços e temperos / de folhas de louro e de pimenta-do-reino / mastruz para tosse braba, / universo / de panelas e canseiras entre as paredes da cozinha / dentro de um surrado vestido de chita, / enfim, / onde batia seu pequeno coração.

            Em poesia, quando se fala de “panela” é com respeito, porque é um artefato que constrói o homem efetivo e uma memória afetiva. Quando a família se reúne em mesa para o alimento fortificante, por mais simples ou frugal que seja, é a panela o instrumento que ajunta o alimento e o oferta. A mesa sozinha não diz muita coisa. Ela só diz “reunião” quando algumas panelas estão, nela, dispostas. Panelas quentes, que resistiram ao fogo. Tão onipresentes que passam despercebidas, como o corpo sadio que carece de dor ou prazer para lembrar de si mesmo. A panela, na poesia, convoca a comensalidade e a irmanação. Todos são iguais em torno da panela. Como tudo é igual dentro dela, tendo absorvido o mesmo tempero, o mesmo calor, ofertando o mesmo gosto. Na panela, os alimentos trocam seus sabores, com sabedoria. E todos existem para a mesma finalidade.

            Talvez por isso, saindo do universo sagrado da poesia, a língua permita que se referiram à panela com uma drástica metáfora que não faz justiça ao artefato que amamos sem precisar de declaração. Refiro-me à panela como designação de grupo cujos sabores se opõem a outros humores. Assim, dizemos “a panela do partido”, “a panela dos trabalhadores”, “a panela do sindicato”, “a panela de qualquer coisa”, até mesmo “a panela da Unirg”. Às vezes, para pejorar um tanto mais, a usamos no diminutivo: “a panelinha”. Ser da panela, neste sentido, seria coisa feia, pois denota que os indivíduos, ali reunidos, são tapados, monológicos, que buscam a tutela exclusiva de seus interesses. A Unirg estaria se transformando nesta “panela”, com interesses auto-privativos, com a pilotagem da Apug. Agora, a panela não seria só panela, mas uma “panela de remos”. Ela virou uma canoa. Panela e canoa não rimam. O que rima é panela e canela. Como pipoca e paçoca. Como tomate e abacate. Como canção e violão. Ou mesmo, embora não devesse, como sereno e veneno, sorte e morte, salário e falsário.

            Ocorre que uma panela, nesta semântica, só pode ser delatada por outra panela. Não necessariamente da mesma forja. Exatamente como ocorre numa fábula de La Fontaine: A panela de ferro e a panela de barro. Reproduzo, aqui, a adapatação de Fernando K. Dannemann, postada no sítio Recanto das Letras, em Janeiro de 2006.

          A panela de ferro propôs à panela de barro que as duas saíssem juntas em pequena excursão pelas cercanias de onde moravam, mas a segunda, por prudência, compreensível, se recusou a sair do cantinho que ocupava no fogão. E explicou à sua companheira de cozinha:

         ? Basta um pequeno toque, por menor que seja, para que eu me veja reduzida a pedaços. Isso porque sou feita de argila e, por isso mesmo, totalmente frágil e indefesa. Ao contrário da senhora, minha cara panela de ferro, que não teme nem mesmo as pancadas mais duras e vigorosas porque, como seu corpo é rijo e forte, ele é capaz de suportar facilmente esses golpes.

          Mas a panela de ferro prometeu protegê-la de tudo que pudesse lhe fazer mal, inclusive servindo como escudo contra qualquer coisa capaz de lhe provocar dano. E assim, convencida pelos argumentos da companheira mais forte, a panela de barro iniciou com ela a jornada pretendida, se bem que com certa dificuldade, pois como suas três pernas não lhe permitiam andar com desenvoltura, ela cambaleava ou tropicava em cada passo dado, ameaçando cair a todo instante. Dessa forma, lá iam as duas panelas pela estrada, esbarrando com freqüência uma na outra, até que, mal tinham dado vinte passos, um encontrão mais vigoroso da panela de ferro reduziu a panela de barro a muitos cacos.

          Moral da história: O fraco não deve se ligar ao poderoso, mas sim procurar companhia  entre os seus iguais. Isso  porque a vida  ensina que  o fraco sempre sucumbe diante do mais forte.

            A fábula fala por si só. Mas insisto que talvez ela forneça as chaves para compreender o nosso momento atual. Fomos acusados, nada poeticamente, de sermos uma “panela”. Penso que devemos aceitar a designação e nos assumirmos como “panela”. A de barro, com certeza. Muito mais frágil que a de ferro. Explico: num passado recente, fomos reduzidos a cacos por uma administração mal feita. Administração que não autorizaria ninguém a se posicionar como “responsável” pela Unirg. Pois o que vimos foi o contrário disso. Panelas em cacos não têm, por direito, o dever de confiar. E não confiamos. Juntamos os cacos e nos ostentamos como “panela de cacos colados”. Fomos deixados à sorte para que espetacularizássemos outras quedas, em cacos fatais. Não oferecemos o espetáculo. Mostramos que, mesmo em cacos, era possível oferecer algum alimento.

            Decepcionada com isso, a “panela de ferro” vive ameaçando: ? Vou federalizar a Unirg! Vou estadualizar a Unirg! sem perceber que as universidades públicas têm uma história de elitização de clientela e que, pelo suporte que se dá à Educação Básica, estaremos excluindo a maioria dos alunos do ensino que, mesmo pagando, é possível aos estudantes atuais. Com estes dizeres, a “panela de ferro” desconhece que a Unirg é muito mais democrática que qualquer outra universidade próxima ou distante. No fundo, a “panela de ferro” não suporta que a “panela de barro” caminhe, cambaiamente, remendada por aí. A “panela de ferro” esqueceu que o alumínio, o barro, a pedra, o vidro também podem vir a ser panelas. Obcecada com isso, ela esquece que deve, a seu turno, oferecer também algum alimento de sua competência. Ela briga por causa da comida que a outra preparou, com sabor propício. Por isso, ela está sempre vazia. Não cumpriu o seu papel no passado e não cumpre ainda agora. É vazia. Panela de ferro, vazia, enferruja. E contamina. Não conseguindo mais andar a passeio com a “panela de barro”, ela ameaça a se desfazer da cozinha inteira.

            Pensemos na moral da fábula!

Este texto foi escrito há pelo menos três anos atrás. O contexto das lutas era outro. Lutávamos por AUTONOMIA. Na época, o Presidente da Câmara de Veradores, Jonas Barros, capitaneou o processo de retirada da AUTONOMIA que durou quase um ano. E ele declarava que havia uma “panela” que queria tomar de assalto a UnirG. 

O tempo passou e a gestão que ele defendia com competência se foi. Outra situação, com mesmo poder, blinda hoje a condução do Executivo e compõe força com ele. A “panela”, contra a qual esconjurava, está na situação. E o grupo que protestava contra a gestão do Abdala assumiu a gestão da Fundação UnirG. Alguns acham que só isso basta para sermos chamados de “autônomos”.

Mas quando nos deparamos com o Projeto de Lei nº 036/2013, levado à aprovação e sanção, sem nenhuma consulta aos professores, o que não dizer ao Vereador Jonas? Será que ele estava vislumbrando exatamente isso? Dias antes, o Presidente da APUG-SSind foi ao gabinete do Presidente da Câmara, Prof. Cabo Carlos, para pedir-lhe que interviesse junto ao Prefeito Laurez para não levar adiante o Projeto. Saindo de seu gabinete, foi ao Presidente Sávio e solicitou a mesma coisa. Se deram atenção, não mudaram o rumo das coisas.

Na reunião com os professores, na quinta, dia 10 de outubro, Laurez Moreira sequer tocou no assunto e este era o principal ponto de pauta. Saiu da reunião, para atender outro compromisso, deixando os presentes com um gosto de decepção, porque, mais uma vez, escutou-se para não ouvir. Coisa que Sávio Barbalho faz como ninguém. Depois de sua saída, Sávio continuou o debate, infelizmente para declarar que o Projeto já estava sancionado pelo Prefeito e que nada mais havia a fazer.

Diante disso, como não comparar as duas gestões e fazer juízo? A gestão Abdala recebeu dos professores a execração, a humilhação e um caixão. Mas o Abadala nunca mexeu na Lei de Carreira dos professores! Será que vai chegar uma hora em que deveremos uma retratação pública sobre o que fizemos durante aqueles protestos? Deveremos agora, na calada da madrugada, sairmos colando cartazes com o rosto dos novos TRAIDORES?

Quando revejo algumas fotografias das mobilizações do passado, lá identifico os militantes que, em nome da honra, nunca poderia ter se omitido a este subterfúgio de negociação. Não deveria ter consentido nessa prática, a não ser que, desde lá, estivessem esperando por uma ocasião propícia para serem alcunhados de TRAIDORES. Assim como faziam com os seus inimigos da véspera.

Resolvi reeditar este texto. De repente, Jonas Barros passa a ser o racional da vez. Talvez deva pedir-lhe desculpa pela ironia daquele momento… simplesmente porque o tempo, que deveria passar com as panelas, nos trouxe outra com mais condimento: o gosto amargo da traição.

José Carlos de Freitas

Presidente da APUG-SSind