Companhias brasileiras e estrangeiras, segundo documentos, monitoraram e espionaram trabalhadores para colaborar com a repressão e aumentar lucros nas fábricas.

A violação dos direitos da classe trabalhadora está sendo alvo de estudos por parte da Comissão Nacional da Verdade (CNV). Membros e assessores da CNV que integram o grupo de trabalho “Ditadura e Repressão aos Trabalhadores e ao Movimento Sindical” reuniram-se por dois dias, no último final de semana (6 e 7/9), na capital paulista, para um ciclo de palestras, onde discutiram métodos para alcançar resultados positivos na pesquisa e investigação da repressão aos trabalhadores.

Após o seminário, Rosa Cardoso, membro da CNV que coordena o GT, Sebastião Neto, secretário executivo do grupo de trabalho, e Victoria Basualdo, professora convidada para o seminário, e que analisou o processo de investigação e de judicialização de crimes cometidos durante a ditadura argentina, em especial, por empresários, concederam entrevista coletiva em São Paulo.

Na entrevista foram apresentados aos jornalistas documentos que indicam o envolvimento de empresas brasileiras e estrangeiras com a ditadura militar. Um questionário será enviado nos próximos dias às empresas mencionadas nos documentos localizados pelo GT Trabalhadores. No questionário, a CNV pedirá esclarecimentos sobre a participação dessas empresas em ações repressivas contra trabalhadores e sindicatos.

Num dos documentos, datado de 24 de janeiro de 1981, do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), aparecem os nomes de mais de 400 funcionários de grandes empresas como Toshiba, Brastemp, Ford e Mercedes Benz. Nas nove páginas constam também o endereço residencial e o setor onde trabalhavam cada um dos funcionários. A CNV está agora investigando o motivo pelo qual o Dops recebeu o documento.

Um relatório confidencial da seção de informações do Ministério da Aeronáutica, também, foi apresentado. Nesse documento fica claro que o ex-presidente da República Luis Inácio Lula da Silva foi monitorado pela Volkswagen quando era um proeminente líder sindical do ABC.

O documento, de 18 de julho de 1983, encontrado nas investigações feitas no Vale do Paraíba, contém um anexo com “lembretes” que descrevem várias atividades sindicais. Uma dessas notas detalha como foi a assembleia dos mutuários de São Bernardo do Campo, no ABC paulista, realizada em 19 de junho daquele ano. Horário de início e de término, local, quantidade de pessoas presentes, nome completo e função dos oradores e até mesmo o que foi dito na assembleia constam no relatório.

Segundo o documento, os mutuários criticavam o aumento de 130% na prestação da casa própria e Lula afirmava que a única maneira dos mutuários acabarem com “essa pouca vergonha do governo” era não pagar mais as prestações do Banco Nacional da Habitação (BNH).

Um outro relatório, desta vez redigido pela polícia civil paulista, mostra a preocupação das empresas em evitar greve dos funcionários. O documento, de 27 de junho de 1978, informa que a indústria Resil SA, de Diadema, ABC paulista, “introduziu entre seus empregados três elementos com a finalidade de informá-los e de ajuda-los na localização dos possíveis mentores do movimento grevista naquela indústria”. O relatório continha ainda a ficha funcional completa de um dos funcionários, que de acordo com o documento pretendia parar as atividades dos operários da fábrica.

Segundo Rosa Cardoso, “o monitoramento por parte das empresas era uma prática generalizada, era o uso de uma prática policial que foi utilizada pela polícia política no contexto da ditadura do Estado Novo. Em 64, na preparação do golpe e depois na ditadura sucessiva ela teve o uso ampliado por militares e por empresários”.

Afirmou ainda Rosa: “Esse grupo de trabalho tem muito claro que os trabalhadores desejam reparação e justiça para as vítimas. O grupo vê com muito respeito o poder judiciário, sabe que comissões da verdade são instituições de uma justiça de transição e que as três faces desta são justiça são memória, verdade e justiça. A intervenção do poder judiciário, com sua desejada imparcialidade, é necessária para a efetiva democratização”.

Seminário

O seminário com Victoria Basualdo, foi coordenado por Rosa Cardoso e contou com a participação de representantes da CNV, de centrais sindicais e de comissões estaduais da verdade que investigam a repressão aos trabalhadores, além de acadêmicos e juristas, representando diferentes partes do país.

Foi discutida a “Responsabilidade empresarial por coautoria e participação na prática de graves violações de direitos dos trabalhadores nas últimas ditaduras do Brasil e Argentina. A experiência argentina no campo da justiça e suas projeções ao caso brasileiro”.

A pesquisadora argentina Victoria Basualdo, que é doutora em história pela Universidade de Columbia, de Nova York, professora titular de História Econômica Argentina da Universidade de Ciências Sociais e Empresariais de Buenos Aires, foi a convidada internacional do seminário. Na ocasião, Victoria apresentou a história da participação de empresas na repressão aos movimentos sindicais na Argentina durante a ditadura, e apontou os caminhos tomados naquele país para a responsabilização dos representantes empresariais, que perseguiram os trabalhadores.

Victoria discutiu também questões como o método de pesquisa e investigação dos fatos ocorridos, método de trabalho para levantar provas e critérios de apuração e responsabilização das empresas que violaram os direitos dos trabalhadores.

Ao final dos dois dias de palestras e debates a experiência da pesquisadora no processo de investigação dos representantes das empresas, que cometeram crimes contra a classe trabalhadora na Argentina, será muito útil para orientar a apuração dos graves violações de direitos humanos ocorridas no Brasil contra a classe trabalhadora.

“Já havia um acervo de informações e até um legado do projeto Brasil Nunca Mais, com muitas denúncias contra os militares, torturadores, violadores, útil para a responsabilização dos militares. Mas, ainda tínhamos e temos poucas informações sobre a participação de empresários, tanto no golpe, quanto fornecendo recursos para a repressão. Também de como foram monitorados os trabalhadores, de como foram perseguidos dentro das fábricas. Portanto, esse seminário veio viabilizar um trabalho muito concreto a respeito do que podemos fazer na Comissão Nacional da Verdade para responsabilizar os empresários e que herança nós podemos deixar para os que se ocuparem da questão da Justiça, porque certamente esse debate vai avançar no Brasil. Nós temos que, como Comissão da Verdade, deixar um material que possa ser utilizado nessas questões”, explicou Rosa Cardoso.

Após o trabalho de pesquisa e investigação da CNV, todo o material levantado ficará a disposição da sociedade e poderá ser usado pelo Ministério Público e pelas vítimas em ações judiciais nas esferas penal e cível.

*Com edição de ANDES-SN.