Uma em cada três mulheres já foi vítima de violência física e/ou sexual. No entanto, esse número, já alarmante, deve piorar como resultado da pandemia do novo coronavírus. Essa triste previsão foi anunciada pela ONU Mulheres, no relatório “A sombra da pandemia: violência contra mulheres e meninas e Covid-19″.

Segundo o relatório, na França o registro de casos de violência doméstica aumentou em 30% desde 17 de março, quando o país decretou a quarentena. Já na China, as denúncias triplicaram no período de confinamento.

Na Argentina, as denúncias telefônicas aumentaram em 25%, desde 20 de março, quando foram decretadas medidas de isolamento.

Países como Canadá, Alemanha, Espanha, Reino Unido e Estados Unidos também relataram aumento nas denúncias de violência doméstica e ampliação da demanda por abrigo para as vítimas.

O Brasil, infelizmente, reproduz essa tendência. Alguns dados já consolidados apontam o aumento da violência contra as mulheres no país. De acordo com o Ministério Público de São Paulo, houve um crescimento de 44,9% nos casos de violência contra as mulheres no estado durante o mês de março, comparando com os casos no mesmo mês do ano anterior. No Rio de Janeiro, segundo dados da Justiça do estado, o aumento foi de 50%.

Já em relação aos casos de feminicídio, dados divulgados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública apontam que houve aumento expressivo no assassinato de mulheres dentro de casa, durante o mês de março, em São Paulo (46%), Acre (100%), Rio Grande do Norte (300%) e Mato Grosso (400%).

Para falar sobre como a pandemia do novo coronoavírus deixa as mulheres ainda mais expostas à violência, o ANDES-SN conversou com a professora de História da Universidade Federal Fluminense (UFF), Renata Vereza.

ANDES-SN: Como você vê o impacto da pandemia e das medidas impostas para a vida das mulheres?

Renata Vereza: De acordo com os dados que temos para o Brasil, disponibilizados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a grande maioria dos casos de violência de gênero e um número expressivo de feminicídios ocorrem dentro dos domicílios.

Assim, situações como esta da pandemia, que exigem para seu combate o isolamento social e maior grau de reclusão, deixam, em larga medida, as mulheres mais vulneráveis a seus agressores, principalmente porque intensificam a convivência.

Além disso, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) do IBGE demonstra que as mulheres, em especial as negras, são a parcela mais precarizada da força de trabalho, não somente pelos rendimentos mais baixos, mas, também, por formarem grande parte do contingente que vive na informalidade e, portanto, sem garantias trabalhistas e sociais.

Diante de medidas de isolamento, em que diversas atividades produtivas foram paralisadas, essas mulheres – em função do alto grau de informalidade, veem sua vulnerabilidade econômica acentuada. Temos ainda que considerar que a maioria dos trabalhadores da área social e da área de saúde, linhas de frente do combate à epidemia, é composta por mulheres. Deixando-as também mais expostas, assim como suas famílias, uma vez que a maioria não conta com estruturas de cuidado que permitam o distanciamento social.

Logo, diante desse cenário, podemos dizer que essa pandemia atinge, de forma incisiva e deletéria, a vida das mulheres.

E, no Brasil, a situação é dramática. Além dos recordes crescentes de violência contra mulheres, vários serviços de apoio foram desmontados pelo atual governo, ao passo que as poucas iniciativas antecipadas na previsão orçamentária do Ministério, sequer saíram do papel.

ANDES-SN: Qual a perspectiva da condição de vida das mulheres passada a pandemia?

Acredito que todas as tendências de vulnerabilidade e de precarização da vida que apontei acima devam se aprofundar. A violência de gênero, que já vem em curva ascendente nos últimos anos, deve se traduzir em números ainda mais absurdos e a violência econômica, diante de um governo sem políticas sociais efetivas, ou até mesmo prejudiciais. Aliado a isso, temos um Congresso Nacional, que se apressa em retirar ainda mais direitos dos trabalhadores, o que se configura como uma potencial segunda pandemia para as mulheres.

O que revela o fato da primeira mulher a morrer por Covid-19 no estado do Rio de Janeiro ser uma trabalhadora doméstica?

Acho que revela um retrato do nível de desigualdade da sociedade brasileira e do pensamento ainda escravocrata das elites e classes médias no Brasil. A patroa, no caso, mesmo doente não liberou a trabalhadora para que esta pudesse se prevenir, pois acreditou que sua convalescência assistida era mais importante que a vida da “sua” empregada. Se, ainda segundo o Pnad do IBGE, considerarmos que a categoria de trabalhadores domésticos é composta quase somente por mulheres e que a maioria destas não tem sequer a carteira assinada (situação que não garante a liberação), veremos que esse não é um caso isolado e que impõe à essas trabalhadoras a escolha entre a vida ou a sobrevivência. Se ponderarmos ainda que essas trabalhadoras integram a parcela mais precarizada na população, na qual várias comorbidades como problemas cardíacos, diabetes e tuberculose são mais recorrentes e menos assistidas, temos uma combinação fatal.

ANDES-SN: Qual impacto da pandemia para as trabalhadoras docentes que você destacaria?

Renata Vereza: Acho importante salientarmos também que, segundo os dados do Inep, dos mais de 2.5 milhões de professores em atuação no Brasil, em torno de 70% são mulheres. A pressão pelo arremedo do Ensino à Distância (EAD) que tem se instaurado no país, em especial na educação básica e a despeito da inacessibilidade à internet em boa parte dos domicílios, configuram uma carga a mais para as mulheres.

Se, tradicionalmente, as tarefas domésticas e de cuidados, ou seja, o trabalho de reprodução social é imposto às mulheres como padrão social, em um cenário de pandemia e reclusão social, a tendência é que este se intensifique.

Assim, para além dos problemas intrínsecos à EAD, o trabalho remoto de casa, a partir de uma metodologia para a qual essa categoria não estava preparada, com limitação de recursos técnicos e/ou sem treinamento para lidar com as ferramentas, aliado à intensificação dos trabalhos domésticos, se impõe como uma sobrecarga abusiva às professoras. Situação que precariza ainda mais o exercício da docência, a situação das mulheres e aprofunda as desigualdades.

Com informações de ANDES-SN